Comentários – Geografia – 1ª Fase – CACD 2019
O Que Rolou Em Geografia?
A prova em 2019 confirmou algumas das hipóteses que vinham sendo levantadas a respeito do que poderia acontecer com a disciplina de geografia face a uma postura que a própria banca por diversas vezes definiu como “crítica” e que, em muitos temas, poderia entrar em choque com a postura atual do governo e da política externa. Se, por um lado, não houve o alinhamento com o discurso oficial em temas sensíveis, por outro ocorreu claramente um movimento de se evitar partes do conteúdo em que o conflito de discursos poderia ficar mais evidente, como a questão ambiental. O resultado foi uma prova que não trouxe exatamente novidades quanto ao conteúdo, mas concentrou-se em uma abordagem mais factual do que propriamente analítica.
As questões 23 e 25 confirmam a histórica importância de geografia urbana na prova, com uma concentração na rede urbana brasileira (apesar do item 23.1 acabar se referindo também a um aspecto de planejamento e organização interna da cidade) que, se não traz uma referência mais direta, por outro acaba se apoiando em fontes tradicionais, como as análises do IBGE e a leitura de Milton Santos sobre a urbanização brasileira. A questão 28 também é a respeito de um tema clássico: população tem aparecido em praticamente todas as provas na última década de concurso e a transição demográfica brasileira acaba por ser um de seus aspectos mais importantes para o concurso. O planejamento territorial/regional volta a aparecer esse ano na questão 27, reafirmando ainda a frequência da região Nordeste dentro dessa temática. Geografia agrária, especificamente o agronegócio brasileiro, entra na questão 26, mas com um olhar diferente de anos anteriores, concentrando-se mais no seu papel no comércio exterior, o que já é um indicativo da composição da banca por um diplomata. Finalmente a questão 24 retoma em alguns de seus itens o debate sobre hipóteses tradicionais da geopolítica propondo, contudo, uma relação mais concreta com características físicas dos territórios, o que de certa maneira é também um diferença em relação à maneira como o tema já apareceu em concursos anteriores.
Considero o saldo da prova de 2019 positivo de maneira geral. Há em algumas questões um rigor com a formulação que fez falta em anos anteriores, sem dúvida, como é possível lembrarmos em relação mesmo às duas primeiras questões de 2018. A abordagem factual não é necessariamente melhor ou pior do que a analítica, é apenas um modelo de prova diferente para o qual de certa maneira também estamos preparados quando consideramos que muitos dados cobrados acabam sendo usados como forma de demonstrar os argumentos nos cursos teóricos e de exercícios. A única crítica em relação à prova de 2019 diz respeito a alguns ítens que acabam por se concentrar em pequenos detalhes, como uma única palavra na formulação ou uma referência cronológica, mas mesmo nesses casos há elementos no texto que ajudam a lembrarmos da informação mais precisa. Acabaram ocorrendo poucos problemas que podem levar a recursos, como será comentado mais especificamente abaixo.
Thiago Rocha
Professor de GeografiaAtenção! O professor Thiago Rocha utilizou a prova TIPO C para elaborar os comentários.
23.1 A questão da mobilidade é mesmo um aspecto central no planejamento urbano e os problemas e custos relacionados à dificuldade de circulação chegam mesmo a receber uma denominação específica: custo de congestão.
23.2 As duas referências em relação à definição das regiões metropolitanas estão corretas, tanto a criação das primeiras RMs em 1973 (Lei Complementar n. 14 de 8 de junho de 1973) quanto a atribuição dos estados na sua definição a partir da Constituição de 1988
23.3 Todas as características atribuídas às metrópoles estão corretas, exceto o limiar de 1 milhão de habitantes. Em nenhum marco legal ou conceitual brasileiro se usa essa referência quantitativa, de maneira que é um item passível de recurso.
Possibilidade de Recurso para 23.3:
O limiar de 1 milhão de habitantes não aparece na definição de metrópoles na hierarquização da rede urbana realizada no REGIG do IBGE. Esse estudo propõe que as metrópoles “são os 12 principais centros urbanos do país, que caracterizam-se por seu grande porte e por fortes relacionamentos entre si, além de, em geral, possuírem extensa área de influência direta”. Apesar da referência ao “grande porte” e, de fato, todas os 12 centros ultrapassarem essa faixa demográfica, a definição não apresenta em nenhum momento esse número, e a metodologia de hierarquização do IBGE segue o número de relações do centro no interior do território. O Estatuto da Metrópole (Lei 13.089 de 2015) tampouco usa essa definição numérica e, mais que isso, atribui ao IBGE a definição da condição metropolitana. Finalmente, ainda que se queira usar como base a definição da metrópole como centro principal de uma região metropolitana, o Art. 25 da Constituição de 1988 também não menciona esse limiar ao atribuir aos estados a definição das RMs por meio de lei complementar, de maneira que nenhuma lei estadual nesse sentido no Brasil também use a referência de 1 milhão de habitantes. Dado que o enunciado se refere inteiramente à rede urbana brasileira e às cidades brasileiras, não cabe buscar nenhuma outra definição para além dos marcos legais e de planejamento do país para as metrópoles. O recurso deve se dar no sentido da inversão de gabarito.
23.4 Pegadinha clássica: a tendência a desmetropolização conforme descreve Milton Santos significa crescimento acima da média por parte das cidades médias, mas não um “quadro de esvaziamento demográfico” para as metrópoles, que não param de crescer, apesar de para muitas o ritmo diminuir.
24.1 A própria referência à hidrografia poderia servir como lembrança ao relevo que estabelece esse padrão de drenagem na cordilheira do Himalaia. Podemos lembrar ainda que entre 1959 e 1962 houve um conflito sino-indiano na região que envolveu enormes dificuldades logísticas e combates em altitudes superiores a 4000 metros.
24.2 A Rússia de fato constitui parte fundamental, por conta dos recursos indicados, do Pivô Geográfico ou Área Pivô (1904) e posteriormente do Heartland (1919) na obra de Halford Mackinder.
24.3 Entre a costa do Pacífico e os grandes centros urbanos do leste dos EUA, as Montanhas Rochosas se erguem como notável obstáculo natural.
24.4 Além da Inciativa Belt and Road como estratégia de ampliar a capacidade de circulação e evitar os riscos de bloqueio, a China não deixa de investir em uma “força naval capaz de atuar em águas internacionais”.
25.1São Paulo e Rio de Janeiro são mesmo as duas cidades com maior peso econômico e capacidade de polarização no território brasileiro, sendo as duas cidades globais brasileiras na maior parte dos rankings sobre o tema. Contudo, o principal deles, produzido pela rede de pesquisa GaWC coloca Buenos Aires acima do Rio de Janeiro, o que complica a afirmação de serem os dois principais centros também na América do Sul.
25.2 Mais uma questão que acaba indiretamente passando pelo debate sobre a desmetropolização e o ganho de importância das cidades médias no Brasil nas últimas décadas.
25.3 Definição correta e que se apóia na própria classificação de Brasília como Metrópole Nacional no último REGIC do IBGE.
25.4 O item apresenta alguns erros, o primeiro deles pelo fato de Manaus e Belém não serem “grandes cidades” médias, mas sim Metrópoles na classificação do REGIC (IBGE). Além disso há capitais regionais no norte como as capitais dos estados e cidades como Araguaína (TO) ou Santarém e Marabá (PA).
26.1O aumento das exportações de soja para a China foi mesmo um efeito esperado da disputa, sobretudo considerando o importante papel que o Brasil já tinha como fornecedor.
26.2 Houve considerável aumento do volume das exportações no século XXI, não apenas uma troca de produtos exportados.
26.3 A redação não é clara nesse caso. Se pensarmos em um fluxo de gêneros agropecuários da China para o Brasil, de fato não é significativo. Mas o termo troca pode sugerir fluxos nos dois sentidos, o que nesse caso deixaria o item errado pelo enorme volume do sentido Brasil-China.
Possibilidade de Recursos para 26.3:
Nesse caso não é uma questão de fontes factuais ou discordância conceitual, o argumento do recurso deve se apoiar na pouca clareza da redação e solicitar anulação.
26.4 A “liderança e protagonismo” do comércio da agropecuária Brasil-China é da cadeia da soja, com peso maior do que a pecuária bovina.
27.1 É possível de fato usar os argumento apresentados para justificar uma “maior capacidade de resiliência” frente à seca no atual século como resultado do planejamento territorial.
27.2 O modelo de atração de investimentos externos por meio de benefícios fiscais no Nordeste é visível desde a criação do modelo de polos de desenvolvimento no âmbito da Sudene na virada para a década de 1960, bem como na guerra fiscal dos anos 1990, como nos mostra o exemplo da Ford em Camaçari (BA).
27.3 A Sudene foi transformada em Adene em 2001, durante o governo FHC, mas recriada em 2007 no governo Lula no âmbito da Política Nacional de Desenvolvimento Regional.
27.4 Os três exemplos mencionados de fato constituem polos de agricultura irrigada, notadamente fruticultura, associados aos chamado Perímetros Públicos de Irrigação, áreas resultantes de investimento estatal, especialmente no âmbito da CODEVASF.
28.1 Boa e precisa descrição do processo de transição demográfica no Brasil, indicando as alterações no padrão de fecundidade e queda no ritmo de crescimento.
28.2 Há um problema com a data: a década de 1920 é cedo ainda, as transformações indicadas passam a ocorrer nos anos 1930 e 1940. Os fatores elencados na sequência servem como sugestões para lembrarmos disso.
28.3 É mesmo na passagem dos anos 1960 para os 1970 que a fecundidade começa a cair no Brasil, significando passagem da fase 2 para a 3 do modelo de transição demográfica. Todos os processos associados e descritos contribuem para essa passagem.
28.4 O erro está no fato de que as faixas de idade mencionadas crescem tanto em termos absolutos quanto relativos