O estudo de direito interno no CACD

O estudo de direito interno no CACD

    O direito está inserido em todas as áreas de atuação do Itamaraty, tanto na Secretaria de Estado, em Brasília, quanto nos postos brasileiros no exterior. Temas como meio ambiente, mar, defesa, migração, desarmamento, Nações Unidas, atos e assistência consular, promoção comercial, contenciosos comerciais, propriedade intelectual, energia, agronegócio, indústria, organizações internacionais, BRICS, G20, entre inúmeros outros, estão enredados pelo direito, direta ou indiretamente. Ademais, o direito (interno, sobretudo) é elemento central na gestão administrativa da SERE e dos postos no exterior. Temas como orçamentos, finanças, licitações, contratações diretas, contratos administrativos, remuneração, promoção, remoção e processos administrativos disciplinares são exemplos nesse sentido. De modo geral, o estudo do direito é imprescindível para compreender a estrutura e o funcionamento da administração pública, o que justifica as questões de direito interno – cada vez mais densas e específicas – no CACD.

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    Eis o conteúdo programático de direito interno no concurso, como previsto no edital: normas jurídicas; personalidade jurídica; Constituição (conceito; classificações; primado da Constituição; controle de constitucionalidade); Estado (elementos; soberania; formas; divisão de competência dos entes subnacionais; sistemas de governo); Estado democrático de direito (conceito; objetivos; divisão de poderes); organização e competências dos poderes; processo legislativo; direitos e garantias fundamentais; administração pública (princípios; estrutura da administração federal; atos, processos e procedimentos administrativos); licitações e contratos administrativos; responsabilidade civil do Estado; direitos, deveres e responsabilidades dos servidores públicos; improbidade administrativa; regime disciplinar; processo administrativo disciplinar; regime jurídico dos servidores do Serviço Exterior Brasileiro (lei nº 11.440/2006); finanças públicas; e normas orçamentárias.

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    Não se engane com a aparente brevidade dos tópicos de direito interno no edital. Por trás de cada item, há inúmeros desdobramentos de interpretação constitucional, divergências doutrinárias, raciocínios cruzados, regras e exceções, súmulas, precedentes e jurisprudência. Nas últimas edições do CACD, é perceptível o aumento do grau de dificuldade e da densidade das questões de direito interno, as quais não mais se limitam à reprodução literal dos artigos da lei e/ou da Constituição Federal (tal como era há alguns anos). A meu ver, direito interno foi o último reduto a ser invadido pela complexidade do CACD. O que era uma prova fácil, até meados da última década, se tornou uma prova exigente, teoricamente densa e específica. Sobretudo após a introdução de novos tópicos no edital de 2019, direito interno atravessou o que poderíamos chamar de “porta do não retorno”, passando a exigir estudo aprofundado, a exemplo do que ocorreu com outras disciplinas do concurso, em momentos distintos.

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    Na primeira fase, as questões de direito interno costumam ser elaboradas a partir dos artigos da Constituição e de leis ordinárias (lei de migração, por exemplo), considerando não apenas a interpretação literal dos seus dispositivos, como também as interpretações restritivas ou extensivas realizadas pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Nas últimas provas, têm sido frequentes as questões sobre precedentes relevantes e jurisprudência do STF, o que impõe aos candidatos o dever de acompanhar a atividade do Supremo. Além disso, a banca examinadora vem exigindo raciocínios cruzados entre artigos, parágrafos e incisos que aparecem em partes distintas do texto constitucional, o que se convencionou chamar de “interpretação sistemática da Constituição”, em oposição à interpretação literal isolada dos dispositivos. Não raramente, a questão desafia o(a) candidato(a) a conhecer eventuais exceções às regras, o que evidencia o elevado grau de maturidade jurídica exigido pela banca.

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    Na terceira fase, além das capacidades exigidas na prova objetiva, a banca avaliará a capacidade de argumentação, a coerência do raciocínio jurídico (isto é, o encadeamento lógico dos argumentos), a correta indicação das fontes jurídicas e a linguagem utilizada. Explicações incompletas ou superficiais serão penalizadas. Na prova discursiva, o(a) candidato(a) deve ter conhecimentos sólidos sobre a letra da Constituição e das leis pertinentes, os precedentes e a jurisprudência do STF, os consensos e as divergências doutrinárias relevantes, o teor das súmulas (vinculantes, inclusive) relevantes, as teses de repercussão geral fixadas pelo STF, os casos de mutação constitucional, os princípios jurídicos, etc. Esses conhecimentos devem ser reproduzidos de forma clara, coesa e coerente, e com linguagem jurídica precisa e adequada. Contudo, não se deve confundir vocabulário jurídico preciso – exigido pela banca – com o que poderíamos chamar de “juridiquês” acaciano, algo que poderá ser penalizado.

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    Por fim, cabe dizer que o Direito é uma disciplina interdisciplinar, que pode (e deve, em alguns casos) servir como fundamento em questões de outras disciplinas, como Português, História do Brasil, Geografia, Política Internacional, Inglês e Economia. Além disso, o direito estabelece as bases institucionais do Estado brasileiro, incluindo as competências do Itamaraty e dos demais órgãos e ministérios da União Federal, bem como estabelece os direitos, deveres e proibições dos servidores públicos federais, incluindo os diplomatas de carreira. Por isso, o direito é a disciplina-base de todo o CACD, que, inclusive, é regido por um conjunto de regras estabelecidas na Constituição Federal, na legislação sobre processos e atos administrativos e no edital do concurso. Dominar o direito não é apenas relevante, mas necessário. A maioria dos juristas não é diplomata; mas a maioria dos diplomatas, em certa medida, deve ser jurista..

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Philippe Raposo
Diplomata. Mestre em História, Política e Bens Culturais (FGV). Especialista em Relações Internacionais (UnB). Bacharel em Direito (UFF). Professor voluntário no Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília (UnB). Professor de Direito (IDEG).