Carreira diplomática para as mulheres

Carreira diplomática para as mulheres

Como já mencionado no Programa #maisumAdiplomata, no Brasil, as mulheres representam mais da metade da população brasileira (conforme IBGE). No entanto, a participação da mulher nas instituições públicas e nos cargos de chefia, ainda está muito aquém da representatividade que deveria existir. Especificamente na carreira diplomática para as mulheres, elas estão beirando apenas 23% de participação (Agencia Brasil).

A fim de ilustrarmos um pouco mais este cenário, trazemos o depoimento de uma aluna que enfrenta, diariamente, obstáculos de opressão e suas consequências em todas as fases de preparação ao concurso do CACD. Confira abaixo!

Mulheres na diplomacia

Depoimento de uma aluna participante do Programa #maisumAdiplomata, Kenia Cardoso, que mostra alguns obstáculos da carreira diplomática para as mulheres:

Não é novidade, para quem vislumbra a carreira, que diplomacia é um ambiente dominado por homens brancos de classe média-alta (ou acima) – embora esse quadro venha lentamente se alterando depois das políticas de inclusão implementadas durante os últimos 10 anos de governo. Acredito que um corpo diplomático tal quadro de composição social seja apenas reflexo também do perfil dos candidatos. Essa constatação estatística me levou a formular perguntas que considero centrais: num país em que mais de 50% da população é negra, faz sentido seu corpo diplomático ser dominado por pessoas brancas? Onde estão as mulheres diplomatas sendo que a população brasileira é composta em 51,6% de mulheres? Mais do que isso… onde estão as mulheres negras na diplomacia?

 

Será que esses grupos minoritários (em termos de direitos sociais) simplesmente não têm interesse na carreira diplomática? Se não, por quê? Quais são as barreiras que os impedem de considerar tal caminho? Se consideram, por que não chegam lá?

 

E não há ainda pesquisa rigorosa para essas perguntas, mas, baseando-me em uma análise sócio-econômica mais geral, acredito ser possível respondê-las. Para isso, eu faço necessariamente análises que incidem sobre perspectivas de gênero, raça e classe. Vou partir do último desses critérios para facilitar a análise.

 

Classe-social: A preparação para a carreira diplomática é altamente custosa. Portanto, a seleção é necessariamente elitista. Essa barreira, a mais óbvia delas a meu ver, já deixa muita gente de fora.

 

Raça: No Brasil, é impossível tratar classe-social sem tratar raça, já que as classes mais baixas são majoritariamente compostas por pessoas negras/pardas. Nesse sentido, para além da barreira financeira que esse grupo social enfrenta de início, há também a questão emocional – que pode ser dividida em dois fatores: falta de representatividade de pessoas negras no corpo diplomático (sobretudo de mulheres negras) e resiliência emocional – a partir do momento em que enfrentar a pressão social de ficar anos estudando (sem renda), ter fé e autoestima suficientes para enfrentar esse caminho são também requisitos.

 

Pessoas negras não têm, historicamente, “autorização discursiva” no Brasil, por isso são sub-representadas em ambientes acadêmicos. Esse é apenas um braço do racismo que estrutura o país e entender que ele se expressa também no ambiente diplomático (uma área que é, em última instância, acadêmica) faz muito sentido.

 

Gênero: Sabemos que a carreira diplomática repele muita gente pela rotina de viagens. Considerando que, geralmente, são famílias patriarcais, em que as mulheres estão acostumadas/condicionadas a acompanhar as atividades de seus maridos, é muito mais fácil para um homem cogitar ser diplomata e ter a tranquilidade de levar sua família do que o contrário (considerando que esses casais sejam heterossexuais). Este é o primeiro fator.

 

O segundo fator se relaciona com a mesma análise feita quando o critério é raça. Mulheres são sub-representadas na academia, na política, em cargos de alto escalão e por aí vai. Portas estreitas, menor representatividade.

 

Terceiro fator: Emocional. Percebo que o ambiente pré-diplomático já é um reflexo do que enfrentaremos no Rio Branco e Itamaraty – já que, concordamos, é um ambiente dominado por homens brancos. A misoginia começa muito antes da aprovação no concurso. E como uma opressão estrutural, ter consciência dela e resiliência emocional para enfrentá-la é um requisito. Entendo que desnaturalizar opressões é um processo necessário para a autoconsciência e inserção saudável em qualquer meio. 

 

Dados todos esses fatores, falo agora um pouco da minha experiência:

 

Sou uma mulher, negra, de classe-média e bissexual. 

Eu me encaixo, portanto, em todos os recortes que levantei acima.

Comecei a estudar sem condições financeiras plenas para a dedicação, por isso (entre outros fatores), fiquei “patinando” na preparação até ganhar apoio financeiro do IDEG. Sem isso, certamente, minha trajetória teria sido muito mais difícil, por ter que me dividir entre estudos e trabalho. 

Então, eliminada, em vários graus, a questão financeira, vivi  e tenho vivido todas as outras. Talvez eu tenha alguma dificuldade em explicá-las por que fazem parte de um processo de amadurecimento pessoal ainda em curso:

Como falei, acreditar em si é um pré-requisito sobre o qual não se fala, mas é altamente relevante, sobretudo num processo de avaliação de alta-performance. E eu fui tomando consciência disso conforme passei a questionar as minhas falhas – obviamente que nem todas se encaixam nesse quesito, mas muitas delas.

E quando falo de auto-confiança, falo a partir da vivência de uma mulher negra e acadêmica:  formei-me em Relações Internacionais e Economia e sempre percebi a necessidade de “provar” a minha capacidade” sob olhares alheios. Se há a necessidade de “provar”, há, portanto, um pré-julgamento de incapacidade. Quantas vezes não ouvi “nossa, como você tirou essa nota?” ou observei olhares espantados diante do meu poder de oratória. Quando falo de autorização discursiva, refiro-me também à credibilidade acadêmica: lemos muito mais autores que são homens e brancos do que mulheres (quiçá negras) na maioria das áreas de conhecimento. A ciência, no geral, é branca. A academia é branca. Daí, para olhos atentos, pode-se concluir muita coisa. 

Falo tudo isso porque percebi que, depois da bolsa, as dificuldades que enfrentei foram, em sua maioria, de ordem emocional (desenvolvimento pessoal) – e tenho certeza que elas passam pelo fato de eu ser mulher, negra e bissexual – não que homens brancos e heterossexuais não enfrentem dificuldades emocionais, mas entendo que sobre eles não incide nenhuma opressão estrutural, o que nos coloca em lugares diferentes.

 

Fecho meu relato com a última das minhas condições: a orientação sexual não aceita.

Sou bissexual e desde que comecei a estudar para a carreira diplomática, enfrentei alguns desafios por vivenciar uma existência considerada desviante. 

Uma análise como essa não pode desconsiderar as variadas camadas e a compõem, portanto ressalto do mesmo modo os fatores individuais que precisam ser levados em consideração. Como o relato proposto é de um ponto de vista social e não meramente pessoal (se é que é possível fazer essa divisão), atenho-me ao que considerei relevante até aqui.

Finalizo meu relato com um podcast que acabei de escutar sobre “economia e discriminação”, em que uma economista discute os impactos econômicos da homofobia. O foco dela é o mercado de trabalho, mas é possível levar a análise para a preparação diplomática no que for cabível.

https://youtu.be/5l30palvrwo

Achei muito bacana esse espaço que o IDEG abriu e tenho certeza que ele será útil para muitas mulheres que cogitariam diplomacia não fossem esses constrangimentos estruturais. Tenho duas amigas, mulheres negras, que desistiram dessa saga por algum dos fatores que levantei, senão uma combinação deles. Afinal, como diz Audre Lorde, feminista negra, “não existe hierarquia de opressões”.”

Programa #maisumAdiplomata

Apoiando a iniciativa do MRE Mais Mulheres Diplomatas, o IDEG criou um programa específico para a carreira diplomática para as mulheres, o Mais Uma Diplomata. Esse programa envolve tanto apoio financeiro quanto pedagógico a todas aquelas que pretendem seguir com a carreira.

Se você é mulher, estuda para a carreira diplomática e se identifica com esta causa, saiba que você não está sozinha.

Saiba mais sobre o Programa: https://ideg.com.br/maisumadiplomata/

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